O Carnaval de 1996 coroou o sucesso da banda de axé É o Tchan/Gera Samba, liderada por Compadre Washington, com a música-chiclete Segura o Tchan. Além da letra – digamos – exótica, a dançarina Carla Perez chamava a atenção pelos seus – também digamos – atributos coreográficos. O grupo começou despretensiosamente e caiu na graça de todo o Brasil. Mas havia críticas, muitas críticas, que se tornaram pesadas com o passar do tempo.
Acusaram Carla Perez de abusar do erotismo nas coreografias e influenciar negativamente crianças que a imitavam em sua dança, de alegado mau gosto, e seus comentários pouco inteligentes. Tacharam-na de vulgar, ignorante, culpada de usar o corpo (pouco coberto) para ganhar fama e fortuna. Clichê, tornou-se o protótipo da "loura burra". A elite cultural debochava dela, quando não a agrediam por seu estilo, expondo o corpo de forma exagerada em shows e TV. Paralelamente ao sucesso, a pecha de burra e vulgar marcou-a de forma indelével, merecidamente ou não. Seu "crime" principal seria, em poucas palavras, denegrir a imagem da mulher brasileira, rebolando lascivamente com a bunda de fora. As elites, principalmente as ditas intelectuais, nutriam por ela um misto de desprezo e deboche. Ela representaria a tal "mulher objeto" e, ainda por cima, estúpida.
Como nas fábulas, o tempo passou. E, incrível, a régua moral/intelectual da tal elite também! Atualmente, rebolar seminua de forma exagerada em rede mundial, simulando sexo com vários homens, ao som de uma música péssima, atuando em clip musical de pobreza técnica e mau gosto extremos é – ora vejam só – sucesso completo, razão de aplausos, de elogios rasgados pela atitude de "orgulho feminino" e um emocionado reconhecimento pelo "magnífico" trabalho, pela coragem épica. O ícone dessa nova "visão" das bundas balançantes é Anitta, rica e famosa – e bota rica e famosa nisso. Vista como exemplo vitorioso em todos os sentidos, comparativamente, Anitta faz Carla Perez ostentar um recato digno de freira enclausurada e a cultura de uma literata merecedora de Prêmio Nobel. A jovem carioca abusa sem nenhum limite da exposição do corpo e dá opiniões sobre tudo, de economia a política, com uma ignorância desassombrada. Paradoxalmente, se orgulha de sua própria falta de conhecimento, dizendo bobagens inacreditáveis. Posta vídeos escancarando sua intimidade, a ponto de expor explicitamente a sessão de tatuagem em seus aconchegos mais ocultos, orgulhosa da frase ali estampada (spitfirst); mas segue inabalável em sua trajetória meteórica, tanto na área musical quanto na financeira. Seu sucesso é tamanho que foi convidada a compor o conselho administrativo do banco do banco digital Nubank em 2021, além de ser atentamente ouvida em uma palestra na universidade de Harvard em 2018, Sim, palestra na premiada universidade. Aplaudida em pé. Anitta é um sucesso absoluto, indiscutível, apesar dos pesares.
Engraçado. Em 1996 não havia o "politicamente correto", mas subir num palco, seminua, para balançar a bunda por dinheiro, era visto como um ato absolutamente desprezível pelas mesmas pessoas que hoje pretendem erigir uma estátua a Anitta, que faz a mesma coisa um quarto de século depois e é descrita como nada menos do que "fenômeno", aliada ao império da hipocrisia politicamente-corretista nas mídias. O que foi que mudou? Ou melhor, quem mudou? Quem decidiu que o errado viraria certo e vice-versa?
O filósofo e professor Luís Felipe Pondé tem uma boa explicação para isso em seus livros, sobre uma espécie de personagem sócio-cultural que ele denomina "o inteligentinho", caricatura do malandraço modernoso hipsterque se julga superior aos demais, em toda a abrangência moral e intelectual. Esse tipo se espalha em progressão geométrica pela mídia, sempre utilizando um vocabulário ridículo que inclui "todes", "empoderamento", "ressignificação", "lugar de fala", "ancestralidade", "verbalização", "estado democrático de direito", "republicano" e outras bobagens pretensamente sofisticadas, sempre com muita "empatia". Taspariu.
De qualquer forma, seria mais justo esse pessoal pedir desculpas a Carla Peres, que apenas segurava o Tchan. E no quesito rebolância, era imbatível. O que é justo, é justo, mano.
Fernando Montes Lopes
Advogado e Professor Universitário